A autonomia do direito e a democracia
Os gregos
inventaram a democracia. E também inventaram a autonomia do Direito. O primeiro
tribunal está lá na Orestéia. Agamenon é assassinado na banheira pelo amante de
sua mulher Clitenestra (na volta de Troia, 10 anos depois). Orestes, o filho
desterrado de Agamenon, atiçado pelo deus Apolo, é induzido à vingança. Ele
deveria matar sua mãe (Clitenestra) e seu amante, Egisto. Orestes mata os dois.
Aí vem a culpa. É assaltado pela anóia, a loucura que acomete quem mata sua
própria gente. Ao assassinar sua mãe, Orestes desencadeia a fúria das Erínias,
que eram divindades das profundezas ctônicas (eram três: Alepho, Tisífone e
Megera). Apavorado, Orestes implora o apoio de Apolo. Pede um julgamento.
Constitui-se,
assim, o primeiro Tribunal, cuja função era parar com as mortes de vingança.
Corifeu, líder do Coro, foi o acusador. Apolo, o defensor. Orestes reconheceu a
autoria, mas invoca a determinação de Apolo. Os votos dos jurados, depositados
em uma urna, dão empate: 5 a 5. Palas Atena desempata, com voto de Minerva (in dubio pro reo). Rompe-se um ciclo. Acabam as vinganças. É uma
antevisão da modernidade.
Vejam: quando
discutimos sobre se o presidente do Supremo Tribunal Federal poderia proferir
voto de minerva (ou seja, votar duas vezes) para desempatar o julgamento do
mensalão, nem precisamos ir adiante ou gastar fosfato. Está lá na Orestéia o
voto de Palas Atena. A favor do réu. Ponto para o Direito. Claro: esse voto é
apenas declaratório, para dizer que o Estado-acusador não conseguiu maioria
para provar o alegado. Logo, o voto de Minerva (versão latina da peça) é a
garantia de um resultado equânime e justo.
Pois na Orestéia
está a primeira manifestação da autonomia do direito. Institucionaliza-se
punição. E acabamos com a vingança. Esse é o papel da Instituição. Quando
institucionalizamos algo, é porque isto — a Instituição — fará por nós o que
não podemos ou não devemos fazer. A segunda manifestação da autonomia do
Direito está em Hobbes, o primeiro grande positivista, colocando a Lei como
interdição, livre de qualquer amarra.
Na sequência, o
novo sujeito histórico representado pela volonté
généralle na Revolução Francesa. É o legislador que põe (institui) a lei sem
amarras. Por isso, surge o positivismo, como forma de manter o positivo, o
positivado. Mas o Direito acaba fracassando. O positivismo do século XIX (nas
suas três vertentes), expurgando moral, valores, ética, chega ao final da
Segunda Guerra absolutamente arranhado. Algo tinha de ser feito. Ou seja,
depois de Auschwitz, o Direito teria que vir de forma diferente. É o que Losano
chama de “Direito pós-bélico”.
O novo paradigma - Pois a Segunda Guerra nos ensinou muito. O novo
constitucionalismo trouxe uma espécie de blindagem contra o “velho”. A
democracia passou a depender do Direito. Cláusulas pétreas e a
institucionalização da moral no Direito (cooriginariedade): eis os grandes
trunfos do Direito para o enfrentamento de (novas) barbáries. Daí as teses de
Ferrajoli (Constituição normativa), Konrad Hesse (força normativa da
Constituição) e Canotilho (Constituição Dirigente). Isso para dizer o menos.
Enfim, a Constituição se transformou em norma. Ela vale!
E é nesse contexto
que surge a jurisdição constitucional (embora tenha sido inventada
anteriormente) como modo de assegurar o cumprimento dessa blindagem. E o Poder
Judiciário exsurge nesse novo paradigma com uma perspectiva de que o Direito
não é meramente ordenador, como no Estado Liberal; tampouco é promovedor no
sentido do Welfare State; na verdade, ele é
um plus normativo em
relação aos modelos anteriores, porque ele tem características transformadoras
(Streck/Bolzan de Morais), o que se pode ver já no início de nossa
Constituição: “O Brasil é uma República que visa a
erradicar a pobreza, fazer justiça social, promover a igualdade...”.
Ou seja, quanto
mais autonomizamos o Direito — e isso foi uma necessidade histórica —
maisfortalecemos o papel do Poder Judiciário, especialmente em países que não
adotaram a fórmula dos tribunais constitucionais, também conhecidos como
tribunais ad hoc. Isso quer dizer
que — deixando de lado aqui as discussões sobre a diferença entre ativismo e
judicialização (todos conhecem minha posição) — houve um sensível deslocamento
do polo de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo em direção ao
Judiciário.
O deslocamento tectônico - Tal circunstância implicou a
formatação de um Poder Judiciário autônomo e independente, exatamente para
poder dar cabo a essa tarefa decorrente desse quase “deslocamento tectônico” ocorrido especialmente no Brasil. A
administração dos diversos setores do Poder Judiciário (tribunais dos mais
variados) ganhou contornos de administração “governamental”, sem considerar o
papel dos presidentes dos tribunais dos estados, substitutos dos governadores
dos estados em casos específicos.
Esse contexto
aumenta sensivelmente a demanda por accountability. Mais de dezesseis
mil juízes no Brasil não podem permanecer à margem dos processos de escolha dos
órgãos de cúpula. O modelo tradicional, que privilegia a antiguidade, na
contramão dos pressupostos republicanos, acaba impedindo a manifestação da
meritocracia e da manifestação democrática da maioria. Esse modelo tradicional,
do mesmo modo, não se coaduna com esse deslocamento (insisto, tectônico) do
polo de tensão em direção ao Judiciário brasileiro.
Isto que dizer,
simplesmente, que a República não é a mesma de antes. A palavra é a mesma; mas
o seu sentido é outro (pensemos, sempre, em Friedrich Müller, quem, a par de
ter inventado o termo pós-positivismo, delegou-nos a diferença entre texto e
norma). Ele — o sentido — deve vir filtrado pelo novo paradigma instituidor. Do
mesmo modo, o Poder Judiciário não é o mesmo de antes da Constituição. Mesmo
que a Constituição não tivesse alterado nenhuma vírgula no novo texto
constitucional, ainda assim a sua dicção seria absolutamente diferente e
diferenciada do velho modelo. Uma filtragem hermenêutica haveria de colocar
tudo no seu lugar de acordo com o paradigma do Estado Democrático de Direito.
O novo e velho - E o que é velho e o novo no Poder Judiciário? Assim
como há o velho constitucionalismo e o novo, com a transformação do texto
constitucional de meramente político a detentor de força normativa, há também
uma dicotomia que deve ser enfrentada no âmbito das Instituições. Se democracia
no contexto liberal tinha um âmbito de preservação formal de determinadas
liberdades, no Estado Democrático ela é substancial. Todo o novo deve ser
olhado com os olhos do novo.
Pois essa força pervasiva (de irradiação) da Constituição (Ausstrahlungswirkung) e do paradigma do Estado Democrático de Direito
deve derramar sua força sobre os textos que compõem o quadro normativo da
Instituição “Poder Judiciário”. Um dos pontos de recepção intensa dessa
filtragem deve ser o conceito de democracia e de representação no contexto do Poder
Judiciário. E, mais: na sua “essência” — entendida no sentido da tradição do
novo constitucionalismo (pós-bélico) — o Estado Democrático de Direito é meritocrático.
Veja-se: essa
problemática já está há muito resolvida no âmbito do Ministério Publico, que já
desde o texto constitucional de 1988 aprofundou o seu processo representativo.
Se a Constituição não era clara o suficiente para permitir que promotores
participassem da eleição para os cargos de cúpula, a legislação ordinária
espancou qualquer dúvida, o que hoje pode ser visto nas diversas unidades da
federação e no próprio CNMP, onde não há a exigência de que o cargo seja
ocupado por agentes de segundo grau. A EC respectiva falou em “membros do MP”.[1]
Ainda, uma questão
importante: quando falo das eleições nos MPs estaduais e no CNMP, onde “não há
a exigência de que o cargo seja ocupado por agentes de segundo grau”, cabe referir
o procedimento de escolha do PGR. Apesar de a regra da Constituição (art. 128,
§1º) não exigir a elaboração de qualquer lista pela categoria, apenas fala na
nomeação pelo presidente da República, após aprovação pelo Senado, há uma
consulta “informal” aos membros que ganhou roupagem “formal” ao longo do tempo
(como ocorre nos MPs estaduais — art. 128, §3º). Ou seja, não há qualquer
inconstitucionalidade de se fazer o menos quando se tem direito ao mais!
As dimensões da recepção da Loman - Nesse sentido, é necessário alertar
para um fato relevante. Muitas vezes — e nossa tradição jurídica tem nos
pregado peças — somos levados a interpretar a Constituição de acordo com a
legislação ordinária. Vários pontos podem ser levantados nessa linha. Assim, o
constituinte não negou a meritocracia no modo de escolha dos órgãos de cúpula
do Poder Judiciário. A Constituição singelamente estabeleceu, no artigo 96, que compete aos Tribunais eleger seus órgãos diretivos (...). E, quanto a
isso, nada mais disse. Por exemplo, em nenhum momento a Constituição faz menção
a que o(s) mais antigo(s) devam ser os escolhidos. Isso para iniciar a
discussão.
Aliás, não deveria
ser recepcionada a Loman no que toca à escolha do mais antigo membro (se é o
mais antigo, sequer há escolha, é indicação). Uma interpretação em conformidade
com a Constituição aponta para a possibilidade de todos os integrantes do órgão
pleno serem candidatos. Isto porque, como dito, não existe “reserva
constitucional” que sustente a restrição. E também isso é assim porque devemos
levar em conta, na interpretação da lei, o conjunto principiológico da
Constituição,e.g.,moralidade e
isonomia.
Esse problema
relacionado à uma espécie “reserva de poder” em favor do critério da
antiguidade vem acompanhado de outro, que é o do alijamento dos juízes
(magistrados de primeira instância) do processo de escolha dos órgãos de cúpula
dos tribunais.
Aponto, nesse
sentido, três soluções para a superação desse alijamento dos juízes:
A primeira delas é
a interpretação da Loman em conformidade com a Constituição, fazendo uma
autêntica filtragem hermenêutico-constitucional. Esse processo pode ser
implementado mediante simples alteração do Regimento Interno do Tribunal,
estabelecendo como sendo o colégio eleitoral o de toda a estrutura do tribunal
de um estado ou região, da qual os juízes, obviamente, fazem parte. Parece
evidente que a independência do Poder Judiciário não depende de que seu
processo eletivo fique restrito aos magistrados de segundo grau. Ao contrário:
examinando a temática da representação do Poder Judiciário por seus órgãos de
cúpula à luz da Constituição naquilo que se entende pelo princípio da concordância
prática — para falar apenas deste —, tudo está a apontar para um
aperfeiçoamento institucional do Poder Judiciário, trazendo-o mais para perto
do papel que a ele é reservado no paradigma do Estado Democrático de Direito,
onde o elevado grau de autonomia do Direito é um dos seus corolários.
Há, assim, um
conjunto de elementos que liga o processo de avanço da autonomia do Direito com
os avanços da democracia no Estado Democrático de Direito. Balizando essa
imbricação temos os princípios — que são virtudes soberanas, lembremos —
republicano, democrático e da democracia participativa, que, mutatis mutandis, devem servir de inspiração para a
oxigenação da ossatura institucional.
Na especificidade,
a Constituição Federal, no seu artigo 96, I, estabeleceu que aos tribunais
competeeleger seus órgãos diretivos. Regulamentando a
matéria, tem-se o artigo 102, da Loman, anterior a CF, pelo qual:
Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação
secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em número correspondente ao
dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida
a reeleição.(...).
Esse dispositivo da
Loman, depois de um banho de imersão constitucional (para usar uma expressão de
que gostava Liebman), estaria violado por algum Regimento Interno que viesse a
permitir a eleição direta e secreta do Órgão de Cúpula na qual todos os membros
— magistrados de primeiro e segundo grau — pudessem votar?
Em um primeiro
momento, poderíamos nos contentar com uma análise semântica, discutindo,
lexicograficamente, o sentido das expressões “os tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos”. Seria possível
atribuir à expressão “tribunais”, seguido do
complemento explicitativo “pela maioria dos seus membros
efetivos”, o sentido de que compreenderia o conjunto dos membros vitalícios,
entendidos como membros não somente os magistrados de segundo grau, mas, sim,
também os magistrados de primeiro grau já vitaliciados?
A resposta pode ser
afirmativa. E há vários indícios formais (formale Anzeigen) que apontam para isso, por exemplo, o mais
simples deles, que é, quando se trata do orçamento, este se destina, por
exemplo, aos tribunais, quer dizer “toda a estrutura daquele Judiciário” e não
apenas do “Tribunal enquanto órgão de cúpula do Poder”. Claro que, em outros
momentos, a Constituição coloca “tribunais e juízes” lado a lado. Mas não os
distingue ao ponto de cindir a estrutura daquele Poder Judiciário (Estado
federado ou Região). De todo modo, quiséssemos
nos fixar em conceitos lexicográficos, poderíamos simplesmente jogar o
artigo 102 da Loman contra ele mesmo. Sim, texto
contra texto, para buscar a extensão da expressão “tribunais” para a abrangência de
“todos os membros, entendidos estes como magistrados de primeiro e segundo
graus”. Refiro-me, pois, ao fato de que a Loman diz que os tribunais elegerão... dentre seus juízes mais antigos... Veja-se como a
semântica, isoladamente, pode nos pregar peças. Primeiro, tribunais... depois, dentre seus juízes...!
Mas, como referi,
não precisamos — e não devemos — nos tornar reféns daquilo que Dworkin denomina
de “aguilhão semântico”, isto é, quando se acredita que as bases do direito
estão fixadas de forma incontroversa por meio de regras semânticas
compartilhadas. O texto (lei) é importante. Sem ele não há norma (sempre,
Friedrich Müller). Kein text ohne Norm; keine
Norm ohne Text (Sem texto não há norma; sem norma não há texto). Claro que o texto não
se esgota nele mesmo. Não há texto em si, como não há a “coisa em si”, como já
denunciava Kant. Na interpretação de um texto (e nas suas possibilidades de
alteração) — que é sempre um evento (fenômeno) —, não podemos nos limitar à
analise semântica acerca do que pode/deve ou não ser abarcado pelo conceito de
uma expressão.
No caso concreto, o busílis do problema não está na expressão
“tribunais” e, sim, naquilo que a Constituição estabelece como sendo um Poder
Judiciário autônomo e independente. O busílis está, também,
naquilo que eventualmente uma lei — no caso, a Loman — coloca como empecilho ao
desiderato da Constituição (no caso, se interpretarmos a expressão “tribunais”
como limitadora da participação dos juízes no pleito, então essa limitação
deverá ser expungida, via Nulidade Parcial Sem Redução de Texto (Teilnichtigerklrärung ohne Normtextreduzierung). O mesmo se diga
em relação à expressão “mais antigos”.
Dito de outro modo,
o Direito não é como as artes plásticas. Ele necessita de um intérprete e de
uma teoria para ser compreendido. No dizer de Eros Grau — problemática
retrabalhada em meuHermenêutica Jurídica e(m) crise — o Direito é alográfico. O sentido é atribuído “de fora”. As palavras
da lei assumem um sentido próprio em um primeiro nível e, em um segundo, um
sentido decorrente daapplicatio (Gadamer). Por isso não devemos ser picados pelo “ferrão da semântica”.
Eis o ponto! Não fosse assim, o marceneiro poderia ser intérprete da lei. Mas,
ao ser intérprete — com o que estaríamos admitindo que o Direito não é
alográfico (ele seria autográfico!) —, o marceneiro poderia pensar, facilmente,
que uma lei que dissesse que três pessoas disputarão uma cadeira no Senado
estaria tratando da disputa pelo móvel da Casa Legislativa. Na palavra furto
estão as milhares de modalidades de furto? Como se pode ler a expressão
“tribunais”? Há um conceito unívoco sobre o que se entende por essa expressão?
E se no mesmo dispositivo tivermos as palavras “tribunais” e “juízes”, uma
coisa está desligada da outra?
Efetivamente, o
Direito não cabe na lei. Os sentidos da lei somente se dão na concretude. Se o
Direito não fosse alográfico, um bom linguista poderia ser o intérprete
perfeito, dispensando qualquer formação jurídica. Alguém picado pelo “aguilhão
semântico” poderia pensar que a dicção das palavras “os Tribunais, pela maioria
dos seus membros efetivos” seria autoexplicativa. Mas não é. Mas — e ainda bem
— o Direito é alográfico. Por isso, o intérprete é indispensável.
Por isso, a
interpretação do fenômeno — possibilidade de os juízes
participarem da eleição direta para os órgãos de cúpula dos Tribunais — deverá ser feita
a partir da Constituição e das possibilidades de implementação, pelos
tribunais, de procedimento para tal. Nesse sentido, se a Constituição diz que
compete aos Tribunais eleger os seus Órgãos de Cúpula, eles mesmos, os
tribunais, recebe(ra)m essa delegação para estabelecerem a dimensão de seu
colégio eleitoral. Explico esse que parece vir a ser o ponto de estofo da
discussão.
A Constituição, ao
não estabelecer a forma de eleição e tampouco restringir os cargos de
presidente e vice-presidente aos membros mais antigos (biocronologia), deixou a
cargo dos tribunais, via Regimentos Internos, o estabelecimento desse modelo. E
a Loman, ao estabelecer que os tribunais, pela maioria dos seus membros
efetivos, “por votação secreta, elegerão dentre
seus Juízes mais antigos, os cargos”, não constitui
nenhum impedimento a que os tribunais, via Regimentos Internos, explicitem que
“membros efetivos” também sejam juízes (a forma de alteração regimental será
feita de acordo com a independência de cada tribunal — forma essa que pode ser
unificada, obviamente, criando-se uma redação minimante padronizada).
Ou seja: se a
Constituição apenas diz que compete aos tribunais eleger os seus órgãos de
cúpula, não há empecilho a que os tribunais venham a interpretar esse
dispositivo como albergando o voto dos juízes de primeiro grau. Ou seja, a
Constituição concedeu autonomia para que os tribunais estabeleçam, por
Regimento Interno, essa forma. E a Loman, anterior à Constituição, se se
constituísse em empecilho — o que se diz apenas ad argumentandum —, seria interpretada de acordo com o
artigo 96, I, da atual Constituição. E, nesse contexto, a interpretação
constitucional também deve ter um corolário lógico:
Se todos os juízes
(membros lato sensu, vitalícios) votam,
ficando ampliado, assim, o colégio eleitoral, não tem mais sentido que os
elegíveis sejam apenas os mais antigos, circunstância, aliás, nem de longe
prevista pela Constituição e sua principiologia. No caso, a alusão aos “mais
antigos” fica subsumida no plano maior da alteração.
Na hipótese, sempre
é bom recordar da holding do case Marbury v.
Madison. A Lei Ordinária (lá, no caso, era a Lei de Organização Judiciária) não
podia dizer mais do que a Constituição. Aqui, em sendo a Loman anterior à
Constituição, não se pode tê-la como recepcionada quando estabelece elementos
para além, não apenas do texto do artigo 96, I, mas da norma que dele dimana, a
partir da robusta principiologia que densifica a regra. Deve ser expungido o
critério biocronológico para assunção aos cargos de direção dos tribunais e,
através de emenda Regimental, estender o Colégio Eleitoral a todos os membros
efetivos, que são os magistrados de primeiro grau com vitaliciedade.
A segunda forma de
superar o alijamento dos juízes de primeiro grau é via alteração legislativa da
Loman, explicitando, no texto, o colégio eleitoral com a participação dos
juízes (no caso, magistrados de primeiro grau lato sensu). A argumentação é a mesma da “fórmula” anterior.
A terceira, na
mesma linha da segunda — só que em sede constitucional —, é a aprovação de
Emenda à Constituição, nos termos, por exemplo, das PECs (de números 15/2012 e
187/2012), que alteram o referido artigo 96, estabelecendo que todos os membros
do Poder Judiciário (magistrados de primeiro e segundo graus), em votação
direta e secreta, elegerão o presidente e o vice-presidente do tribunal dentre
os membros do Órgão Especial (claro que, no caso de não existir órgão especial,
dentre os desembargadores do tribunal).
Parece evidente que
não constitui cláusula pétrea a forma de eleição dos órgãos de cúpula do Poder
Judiciário. Despiciendo trazer à lume o que são as cláusulas pétreas e qual é a
sua finalidade. Não esqueçamos, de todo modo, que jamais uma cláusula pétrea
poderia ser invocada para evitar o avanço democrático de uma Instituição ou de
um Poder de Estado.
Cláusulas pétreas
existem como blindagem contra os predadores exógenos do direito (economia,
moral e política) e para garantir que não haja retrocesso no processo
social-democrático. Obviamente, não se poderia dizer que permitir que os juízes
do Brasil — responsáveis pela condução das eleições parlamentares e
majoritárias mais limpas do mundo — passem a ter direito a voto para os órgãos
de cúpula do Poder Judiciário seja uma violação de cláusula de pedra.
Isto porque uma
Constituição nunca deve ser lida contra ela mesma.
Ainda no que diz
respeito à terceira maneira, também não há qualquer eiva no que pertine à
iniciativa legislativa. O Poder Legislativo pode fazer emenda constitucional
para estabelecer alterações desse jaez. A iniciativa do Poder Judiciário — a
cargo do STF — não se constitui em óbice à iniciativa parlamentar para aprovar
emenda constitucional. Lembremos, por exemplo, das diversas emendas
constitucionais já aprovadas, alterando e introduzindo dispositivos no capítulo
destinado ao Poder Judiciário.
Em conclusão - No mês de dezembro de 2012, a chamada Reforma do
Judiciário (EC 45/2008) completou oito anos. Visava, segundo o discurso da
época, a tornar o Judiciário consentâneo com o nosso tempo. Muito se falou em
aumento da eficiência, em accountability, em busca de
resultados. Porém, infelizmente, a estrutura — considerada lato sensu — continuou a mesma. E não há como se
reformar, realmente, sem se reestruturar. Senão, vira remendo. A estrutura
Judiciária precisa ser compatível com o modelo de Estado de Direito. Em nosso
caso, precisa, também, ser democrática.
Em interessante
estudo — hoje já conhecido de todos —, o magistrado argentino Eugenio Raúl
Zaffaroni aponta a existência de três modelos estruturais, todos eles oriundos
de estágios diferenciados de evolução política da magistratura. Em um modelo empírico primitivo, típico de regimes democráticos no
mínimo débeis, há o domínio e o controle do Judiciário pelo poder político. E
isso é feito pela nomeação dos juízes pelo poder político — que, no momento
necessário, cobrará a devida lealdade — e por meio do deslocamento do poder
decisório nas cúpulas, gerando baixa qualificação técnica e partidarização.
Podemos dizer que superamos essa estrutura, pelo menos.
O segundo modelo é
o técnico-burocrático. Afasta-se da arbitrariedade seletiva, pois os
juízes são, na grande maioria, escolhidos por critérios de mérito técnico. Contudo,
forma-se, em face da estrutura hierarquizada, uma magistratura burocrática e
carreirista. A independência é apenas externa, impactando, inclusive, no
controle de constitucionalidade. Embora corresponda a um ambiente mais estável,
não se afasta o caráter autoritário.
Por fim, o modelo democrático-contemporâneo avança nas
conquistas do modelo anterior, pois, além da seleção técnica de seus membros, a
independência não fica limitada ao ambiente externo: a democratização do
Judiciário é feita pela eleição dos órgãos dirigentes pelo voto igualitário de
todos os juízes e pela desierarquização administrativa dos colegiados,
supressão das sessões secretas e permite a formação de uma magistratura
pluralística desde o momento da escolha técnico-meritória dos seus membros.
Esse modelo é o que melhor se compatibiliza com o Estado Democrático de
Direito.
Embora tais modelos
não sejam representações estantes do mundo judicial, é fácil perceber que a
Reforma do Judiciário de terrae brasilis não suplantou o
modelo técnico-burocrático. Seu discurso, pelo contrário, é autoritário, na
medida em que transforma o Judiciário em corporação. E isso não é bom.
Por isso a
necessidade da democracia, com as alterações Regimentais antes aludidas (ou de lege ferenda, de outro modo). Não há impedimento
de os juízes participarem do processo de escolha dos Órgãos de Cúpula dos
tribunais.
Para tanto, sequer
precisamos depender da semântica legal, pois a própria Loman acaba falando
também de “juízes” (claro que a interpretação, aqui, torna despicienda esse
apelo à semântica, pois estamos imunes ao “aguilhão semântico”). A Constituição
apenas refere que os tribunais escolhem os seus dirigentes. Ao não especificar
e detalhar o modo de escolha e tampouco aludir a que apenas os mais antigos possam
fazer parte dos Órgãos de Cúpula, a Constituição (art. 96, I) fez exatamente o que dela se esperaria no novo paradigma: Afirmou o elevado
grau de autonomia do Direito e, consequentemente, do Judiciário que por último
diz o que o Direito é. Por isso, a alusão “aos Tribunais compete” se deve dar o
alcance principiológico ínsito ao Estado Democrático, isto é, os próprios
tribunais poderão fazer essa democratização. O caminho? Aquele que a própria
Constituição prevê, via Regimentos Internos, também previstos na Constituição.
Efetivamente, os
juízes devem participar da escolha dos seus dirigentes. Veja-se que recente
pesquisa da AMB constatou que 99%(!) deles sequer sabiam qual o percentual dos
recursos orçamentários destinados à sua Vara/Comarca.[2]
Alia-se a isso a
crescente contaminação do Judiciário pelo discurso econômico (análise econômica
do direito e seus efeitos colaterais). Não para menos, tanto se fala hoje em
eficiência, como se fosse ela a pedra de torque da atuação do Judiciário. Há
muito por fazer, mesmo tendo já passados mais de vinte anos desde a promulgação
da CF.
Por exemplo,
torna-se mais sintomático quando o Conselho Nacional de Justiça publica uma
resolução estabelecendo como critério para promoção, “o respeito às súmulas do
Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores.”[3] [4] Não fosse isso, surgem críticas ao “independentismo” da magistratura de
primeiro grau, como se ter uma postura independente fosse algo reprovável. Mas
o juiz não é independente, é verdade. Ele tem um senhor: a Constituição!
Não se pode falar
em aproximação do Judiciário da Democracia quando, em seu âmago, impera uma
estrutura hierarquizada, que, ao fim e ao cabo, termina por criar magistrados
de maior e menor dignidade e consideração. Forma-se uma espécie de aristocracia
judicial — quando sabemos que a jurisdição e o controle de constitucionalidade
é exercido igualmente por todos os membros do Poder Judiciário. E como se falar
em boa gestão judicial quando a escolha do seu dirigente deixa de ser uma
questão político-democrática para se tornar biológico-cronológica?
A restrição a que
apenas os membros do segundo grau participem da eleição não faz sentido — o
Representante há de ter alguma ligação com os “Representados” ou, então, a
escolha do presidente do Tribunal poderia ser feita pelo governador ou pelo presidente
da República (como é o caso do presidente da Suprema Corte, que é escolhido
pelo presidente da República nos EUA). Isso porque estou supondo que o “cargo”
de presidente do tribunal signifique uma atribuição de representação de alguém
que irá “gerir administrativamente” o órgão, o que tem implicações diretas
sobre o dia-a-dia dos “representados”.
Vivemos, ainda, o Ancien Régime nos Palácios da Justiça?
A resposta está com
os tribunais, exatamente os que receberam da Constituição, no artigo 96, I, o poder
de eleger os seus órgãos diretivos. O constituinte deixou para o processo
democrático definir os mecanismos dessa eleição.
Encerro com uma
frase de um autor muito caro para a magistratura brasileira — que, frise-se,
nem é bem de minha predileção — Boaventura de Souza Santos, para quem “as Repúblicas devem ter por imperativo ‘democratizar a democracia’, mais
ainda as suas Instituições responsáveis pela proteção e promoção da democracia,
como é o caso do Judiciário”.
Passados 190 anos
do Grito do Ipiranga e 123 anos do fim da Monarquia, precisamos, então,
proclamar a independência e instaurar a República dentro do Judiciário! E
democratizar a democracia!
[1] Claro que, no caso dos juízes, a participação deles no processo eletivo
não implicará a possibilidade de um juiz chegar a presidir o respectivo
Tribunal. No caso, assim como para concorrer a governador é necessário que o
candidato seja brasileiro nato e maior de 35 anos, também há requisitos
intrínsecos a serem preenchidos a partir da especificidade do Poder Judiciário.
[2] http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisas/MCI_AMB.pdf
[3] Recebemos com surpresa e preocupação a Resolução 106 do Conselho
Nacional de Justiça - CNJ, que trata do estabelecimento de critérios para a
promoção, remoção e acesso de magistrados por merecimento, uma vez que assim
prescreveu: “ Art. 5º Na avaliação da qualidade das decisões proferidas serão
levados em consideração: (...) e) o respeito às súmulas do Supremo Tribunal
Federal e dos Tribunais Superiores.” Santos Júnior, Rosivaldo Toscano dos.
Independência ou Morte. Disponível em <http://rosivaldotoscano.blogspot.com/2010/04/independencia-ou-morte.html>.
[4] A mesma advertência faz Isidoro Álvares Sacristán: “Las tendencias
actuales de situar a los jueces bajo la funcionalización choca con el concepto
clásico de independencia y nos llevaría a la jerarquización que alentaría una
disciplina intelectual cerca del totalitarismo jurisdicional.” (SACRISTÁN,
Isidoro Álvares. La justicia y su eficácia: de la constitución al proceso.
Madri, COLEX, 1999, p. 79).
Lenio Luiz Streck é
procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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