A imolação de animais é uma
prática usual em algumas religiões. A história registra que povos, culturas demasiadamente
avançadas aos olhos dos ocidentais contemporâneos, a exemplo das culturas inca
e asteca, sacrificavam humanos em honra ao Deus sol, no topo de pirâmides
cortadas ao meio. Os sacrifícios eram realizados na forma de oferendas, com
predomínio da idéia de se aplacar a ira das calamidades.
Os povos da áfrica, os iorubás e os jejes, que
habitavam a atual Nigéria, Togo, Gana, Benim e regiões vizinhas
e que foram trazidos para o Brasil e outros países do ocidente como escravos, a
fim de sustentarem o modelo econômico mercantilista, o modelo de comércio
triangular, que naquele momento não prescindia deste importante insumo
econômico e mão de obra, embora considerados povos culturalmente atrasados e praticantes
de feitiçaria, apear de culturalmente atrasados à luz da compreensão européia, não
praticavam sacrifícios humanos e nem mesmo cogitavam de culto alicerçado em
disfarçada antropofagia com admitem os cristão no sacrifício da missa, mas tão
somente cultuavam os seus antepassados e os seres e para eles ofereciam
sacrifícios de animais irracionais.
O sacrifício de animais está presente em quase todas
as religiões e, inclusive naquelas consideradas reveladas ou não baseadas em mistérios. O Hinduísmo ,
o Islamismo, que uma religião relevada de origem abraâmica semelhantemente ao
judaísmo e ao cristianismo, e as religiões de matriz africana, como o Candomblé
e a Umbanda praticam sacrifícios de animais.
No caso do islamismo o sacrifício é parte integrante
de celebração para lembrar o sacrifício realizado por Abraão no monte Moriá, na
oportunidade milhares de animais são sacrificados. Também os judeus por ocasião
da sua páscoa, anualmente, promovem o sacrifício de animais, hoje não mais no Templo,
visto que foi destruído pelos romanos no ano 70 da era cristã, mas nos seus
lares.
Os cristãos, embora não sacrifiquem animais nem
humanos, tem na morte de Jesus, o Cristo, ocorrida após condenação por crime
político-religioso, condenação conduzida por sacerdotes do judaísmo em
articulação com autoridades estatais do Império Romano, é tido como um
sacrifício definitivo em substituição àquele sacrifício anual de cordeiros
realizados pelos Hebreus no seu Templo, por ocasião da Páscoa. Observe-se que o
sacrifício de Jesus é um expiatório, a exemplo daquele em que os judeus
expulsavam um bode para o deserto a fim de que morresse e assim expiasse os
pecados do povo, ou seja, o sacrifício da cruz se destina a purgação dos
pecados de todos os homens decaídos desde Adão, não é um sacrifício propiciatório,
ou seja, aquele que ofertado em ação de graças à divindade, a Deus.
A missa diária dos católicos e a santa ceiam
dos protestantes e demais segmentos evangélicos, fundados ou não no dogma da
transubstanciação, nada mais são do que a reiteração desse sacrifício de
substituição.
Para se falar em liberdade religiosa é importante
analisar-se o próprio conceito de religião, o conteúdo endógeno dos cultos às
divindades, seus princípios filosóficos e morais, uma vez que o que para um
homem é religião pode ser considerado por outro como uma superstição primitiva,
imoralidade, ou até mesmo crime, não havendo possibilidade de uma definição
judicial ou mesmo legal do que venha a ser uma religião.
Cabe destacar que para os adeptos das
religiões de matriz africana a matança de animais, parte do culto que antecede
a todas as festividades do terreiro, onde são imolados animais chamados de
“dois pés” (aves como pombas e galináceos) e de “quatro pés” (ovinos, suínos, bovinos
e caprinos), o sacrifício desses animais possui um investimento simbólico e
litúrgico imprescindível para a teogonia e liturgias próprias do contexto
religioso.
Esclareça-se que ao contrário das
religiões ditas reveladas, Cristianismo, Islamismo e Judaísmo, as religiões de
matriz africana são religiões de iniciação e não de conversão, a imolação de
animais é parte integrante desse processo e serve também para realizar uma
comunicação e troca de benefícios religiosos entre os adeptos e as entidades, sempre
obedecendo a regras específicas e sofisticadas, ditadas pela tradição e
marcantes nesses rituais. Somado ao transe possessivo, o sacrifício de animais
consiste em um dos pilares destas religiões.
Assim, inequívoco que o sacrifício
nessas religiões deve sempre ser reconhecido enquanto um fenômeno social que
mobiliza diferentes atores com fins específicos, social e legitimamente
construídos.
As trocas simbólicas advindas desse
fenômeno são partes integrantes do código de sentido oferecido por tais religiões
para seus adeptos. “As imolações realizadas nas religiões afro-brasileiras, o destino mais
peculiar da carne do animal consiste na alimentação, que também pode ser
percebida como parte do ritual…” (Direito Litúrgico, Direito Legal: a
polêmica em torno do sacrifício ritual de animais nas religiões afro-gaúchas,
Revista Caminhos, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007).
Desta forma, se pode depreender é que
a imolação de animais é parte imprescindível dos cultos professados pelas
religiões de matriz africana e não apenas por elas, sendo certo que a vedação
de realização de sacrifícios de animais para fins religiosos pode significar um
constrangimento dos adeptos de qualquer religião à renúncia de sua crença, o
que ensejaria evidente infringência aos preceitos constitucionais supracitados
e desarrazoada medida de restrição a um direito fundamental resguardado
pela Constituição Federal.
À luz do sistema jurídico brasileiro
inexiste, portanto, qualquer objeção ao abate religioso, de sorte que especulações
neste sentido devem ser creditadas a desinformação, a ignorância, à
improvisação ou em muitos casos a uma indisfarçável discriminação religiosa.
“Em razão do Brasil se constituir em um Estado laico
possuímos uma grande diversidade de cultos religiosos e uma proteção muito
grande a estes cultos, especialmente incluídos em nosso texto
constitucional, sendo certo que a abrangência do preceito constitucional é
ampla, pois, sendo a religião um complexo de princípios que dirigem os
pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por
compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto.” (MORAES, Alexandre de. Constituição do
Brasil Interpretada. 6ª ed. atual. São Paulo: Atlas. 2006. p. 215).
Cabe, ainda, destaque para o que
estabelece a Instrução Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2.000, da Secretaria
de Defesa Agropecuária, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento,
que aprovou o Regulamento Técnico de Métodos de Insensibilização para Abate
Humanitário de Animais de Açougue, que em seu item. 11.3 destaca que “é
facultado o sacrifício de” animais de acordo com os preceitos religiosos, desde
que sejam destinados ao consumo por comunidade religiosa que os requeira ou ao
comércio internacional com países que façam essa exigência, sempre atendidos os
métodos de contenção dos animais.
A respeito do tema, na visão da
Doutrina, afirma Celso Antonio Pacheco Fiorillo em seu Manual de Direito
Ambiental e Legislação Aplicável: “Um dos aspectos do meio ambiente é a cultura
do povo. Esta entidade como o conjunto de bens materiais e imateriais que
compõem a identidade e formação dos diferentes grupos formadores da sociedade”.
“Ora, é sabido e conhecido que a fauna é normalmente utilizada como forma de
preservação e exercício da cultura dos diversos grupos da sociedade brasileira,
exemplo disso são os rodeios, a farra do boi, o sacrifício de animais no
candomblé, etc.”
Celso Antonio Pacheco Fiorillo
argumenta, ainda, na mesma obra, acerca do conceito de crueldade: “se
matar um animal é um ato cruel, o que dizer dos 200 mil frangos abatidos por
dia, no Brasil, sem que ninguém tome providências a respeito”?
Destarte, segundo o clarividente magistério do respeitado ambientalista a
expressão da religiosidade, manifestada através de sacrifícios de animais, não
viola o direito ambiental. Não ocorre, objetivamente, qualquer colisão de
direitos, haja vista que na espécie prevalece a preservação da cultura, em
detrimento do direito dos animais.
Há se observar que a religião, como
crença em algo superior, acompanha o homem desde o início de sua existência. Não obstante, a liberdade religiosa, como é
conhecida hoje, é algo bem recente, embora no passado haja exemplos isolados
como a tolerância romana aos cristãos.
A liberdade religiosa no ocidente, apesar
de não ter sido geral, tem seus frutos na "Bill of Rights" inglesa,
pois neste documento publicado após a famosa Revolução Gloriosa, que entronizou
definitivamente um protestantismo de modelo não luterano como religião oficial
do Império Inglês, há a concessão da liberdade de religião para todos os
segmentos cristãos exceto para os católicos, que ainda continuariam a serem
perseguidos e discriminados nas terras inglesas.
Cem anos depois da famosa “Bill of
Rights” inglesa o mundo conheceria o primeiro documento que concederia
liberdade de religião a todos a celebre Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, que em seu artigo 10° assegurava o todos o direito de ter qualquer
opinião religiosa desde que não prejudicasse a ordem.
No Brasil, a partir da vigência
da Constituição Federal de 1891 (primeira Constituição Republicana), embora sob
a égide do positivismo, houve a tão almejada separação entre o Estado e a
Igreja, sendo garantida, definitivamente, a Liberdade Religiosa à todos os
brasileiros. No entanto, a Liberdade Religiosa veio condicionada ao interesse
público e aos bons costumes.
A segunda constituição
brasileira, nascida da Revolução de 1930, a Carta Magna de 1934 manteve a mesma
linha da Carta Constitucional de 1981, seguida da Constituição de 1937, essa
nascida do modelo fascista italiano e polonês, que não alterou quase nada, no
que diz respeito a Liberdade Religiosa (que continuava vinculada à “ordem
pública e aos bons costumes”), à não ser o fato de que o direito à Liberdade
Religiosa passava a pertencer ao direito comum.
Sucedendo a Constituição
do Estado Novo, não houve novidades nas Constituições Federais de 1946, 1967 e 1969,
tendo em vista que todas elas continuaram subordinando a liberdade religiosa à
ordem pública e aos bons costumes.
Por fim, graças a
Constituição Federal, que entrou em vigor no dia 05 de outubro de 1988,
ampliou-se o Instituto Jurídico da Liberdade religiosa, pois deixou-se de
exigir explicitamente que esta esteja condicionada à ordem pública e aos bons
costumes, tendo em vista que essa vinculação é incoerente, vez que, é inerente
à todo culto religioso a ordem pública e os bons costumes.
Com o advento da
Constituição Federal de 1988 acreditava-se que a perseguição religiosa aos
cultos de matriz africana, que levava a demonização dos sacrifícios de animais sob a
ótica de maus tratos aos animais, a invasão de terreiros, a destruição de
utensílios religiosos e a prisão de sacerdotes de candomblé, tudo sob a
justificativa de pratica de superstições e ofensa a ordem pública e os bons
costumes seria definitivamente postergada. No entanto a crença no advento de
uma nova ordem democrática, fundada da efetividade dos Direitos Fundamentais,
se esvaece ante o avanço e predomínio do relativismo, do ateísmo militante, de
uma tecnocracia que entroniza o deus técnica-consumo no lugar do Deus
insondável e Divino.
Na contramão do Estado
Democrático de Direito, que garante as liberdades individuais, se tem a
criminalização das religiões não presas ou seqüestradas pela modernidade da tecnocracia
e do individualismo, que se alicerçam nos valores da historia e no culto de
seres da natureza e dos antepassados. Verifica-se que nesses tempos tenebrosos
as religiões de matriz africana com seus sacrifícios de animais, por não se
enquadra na geometria da modernidade são as mais atacadas.
As autoridades, quase
todas elas, sejam dos Poderes Executivo, Judiciário e até mesmo do Ministério
Público, também prisioneiras da
ideologia da tecnocracia e individualismo que norteia a modernidade, sem atentarem
que tal ideologia é instrumento de genocídio e extermínio de tradições
religiosas e culturais, na contramão do Estado de Direito, negam a efetividade
da Constituição Federal no tocante Princípio da Liberdade de Culto e Crença e
incorrem em abuso de autoridade. O abuso de autoridade que é
crime de mão própria regulado por lei especial. A referida Lei nº 4.898/1965, no seu artigo
3º define que:
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
d) à liberdade de consciência e de crença;
e) ao livre exercício do culto religioso;
Não obstante a Constituição Federal
erigir como um dos Direitos Fundamentais a Liberdade de Culto e de Crença, o
que se observa hodiernamente é que autoridades atribuem a si imunidades
inimagináveis, as quais, semelhantemente as dos tempos do Imperador Romano Caio
Calígula, que se pretendia ser Deus em
antinomia com os demais deuses do panteão romano e se martirizava por a
humanidade não ter uma só cabeça e único
pescoço, segundo Albert Camus em famoso texto teatral, para que assim pudesse
exterminá-la com um só golpe de espada, e se permitem dizer o que é sagrado e
verdadeira religião, embora não sendo sequer teólogos.
O que se infere de muitas decisões
judiciais, de muitas das denúncias fundadas em maus tratos aos animais ou em
perturbação ao sossego alheio por sacerdotes de religiões de matriz africana é
que certas autoridades se arvoram de novos deuses e em estarem acima do
assegurado da Constituição Federal e vedado pela Lei nº 4.898/1965, lhes
permitindo a perseguição religiosa na modalidade de negação à liberdade de
culto representada pelo sacrifício de animais por sacerdotes das religiões de
matriz africana.
A Liberdade Religiosa que
contém Liberdade de Culto e Liberdade de Crença é uma direto que não pode ser
negado a ninguém, sob pena de se estar a fomentar práticas mal disfarçadas de
genocídio e supressão de culturas.
Assim, uma vez que o
sacrifício, a imolação de animais enquanto conteúdo endógeno das religiões de
matriz africana é a razão de ser da celebração religiosa, ao se criminalizar a
prática, subsumindo-a ao tipo penal de maus tratos aos animais, se estar na
verdade se negando efetividade ao princípio constitucional da Liberdade de
culto e de crença, se fazendo a sociedade retroagir ao negror das trevas da
intolerância religiosa, embora se pensando estar vivendo em tempos pós
modernos, no fim da História.
Miguel dos Santos Cerqueira - Defensor Público, Coordenador do Núcleo de Defesa de Direitos Humanos e Promoção da Inclusão Social.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos.11 ed., Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
FILLAIRE, Bernard. As seitas. São Paulo: Ática, 1997.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso
de Direito Ambiental Brasileiro. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco e RODRIGUES,
Marcelo Abelha. Manual de Direito
Ambiental e Legislação Aplicável. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1999.
GAARDER, Jostein. O livro das religiões.
Primeira Edição, São Paulo: Companhia das letras, 2000.
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1998.
PIERUCCI, Antônio Flávio e PRANDI, Reginaldo.
A Realidade Social das Religiões no
Brasil. 1ª ed., São Paulo: Hucitec, 1996.
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito
constitucional e internacional. São Paulo: Editora Juarez de oliveira,
2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentem aqui!