Se toda
pessoa é inocente até que se prove o contrário, Pizzolato fez mais do que isso.
Provou sua inocência.
Nos próximos dias, o STF irá
examinar os recursos de Henrique Pizzolato, o antigo diretor do Banco do Brasil
condenado a 12 anos. Não se sabe a data certa porque a agenda de cada dia
costuma ser anunciada de modo repentino e está sujeita a mudanças inesperadas e
imprevisíveis.
É uma situação inexplicável, que prejudica os
réus. Muitas vezes, seus recursos são julgados sem que seus advogados possam
estar presentes.
Quem costuma ler este espaço conhece minha
opinião.
Estou convencido de que, como vários réus,
Pizzolato (o presidente do tribunal Ayres Britto o chamou de ”Pitzolato,”
talvez para dar um toque italianado ao ambiente) foi condenado de forma
absurda, contra toda lógica e contra todos os indícios materiais.
Explico. O drama não é que, como acontece com
muitos réus, não surgiram provas para culpar Pizzolato. Havia provas sim. Mas elas demonstram sua inocência.
Se toda pessoa é inocente até que se prove o
contrário, com se aprende nos cursos preparatórios de Direito, Pizzolato fez
mais do que isso. Provou sua inocência.
Sei que é difícil ler uma afirmação tão
categórica sem desconfiar da sanidade de quem escreveu. Peço ao leitor que
tenha um pouco de paciência e acompanhe este texto até o final. Muitas vezes as
pessoas só conseguem enxergar aquilo que querem ver.
Tivemos um exemplo recente. Não foi assim que
ontem a inesquecível jornalista Micheline Borges duvidou que aquelas mulheres
negras que vêm de Cuba para participar dos Mais Médicos pudessem ser médicas,
pois têm “cara de empregada doméstica”? “Médico tem cara de médico, se impõe a
partir da aparência... Coitada da nossa população,” escreveu Micheline,
traduzindo, com sinceridade bruta, 500 anos de preconceito que nossos
observadores mais cultos e bem colocados nos jornais e na TV exploram politicamente,
de forma vergonhosa, mas com cuidado para não dar na vista.
Pois é. O caso é que Pizzolato, em termos
penais, não tem “cara de médico.”
Pizzolato foi condenado porque a acusação disse
que era “pessoalmente” responsável pelo esquema. Ele é que teria comandado um
suposto desvio de R$ 73,8 milhões para o PT. Definia antecipações para a
agencia DNA, que mandava o dinheiro para o PT. Segundo os ministros que o
condenaram, “Pitzolato” (aos poucos a gente vê o tipo de associação que se pode
fazer com italianizações, não é mesmo? Seria uma associação de italianos com a
máfia?) manipulava recursos públicos, que “pertenciam ao Banco do Brasil”,
usando a empresa Visanet.
Tudo isso é falso, errado, e não para em pé. Mas
está lá, no tribunal, e pode levar Pitzolato para a cadeia.
Vamos devagar para explicar direito. Está
provado nos autos da ação penal que Pitzolato (será que estavam falando em
pizza, sinônimo de impunidade?) não assinou nenhuma das notas que determinaram
os pagamentos de R$ 73,8 milhões. Eram quatro notas, de valores variados. Nenhuma tem seu autógrafo.
Duas notas foram assinados por um diretor
chamado Leo Batista de Oliveira. Outras duas, por Douglas Macedo. Não há a
assinatura de Pitzolato nos documentos. Nenhuma vez. Descobriu-se, apenas em
2012, em pleno julgamento, que eles estavam sendo investigados secretamente, em
outro inquérito que ninguém sabe que rumo tomou porque, até hoje, continua
secreto.
Ao menos por enquanto, aqueles que a justo
título eram os únicos que poderiam ser chamados de responsáveis “pessoalmente”
pelo pagamento, não correm o risco de enfrentar uma pena de prisão prolongada,
como Pitzolato pode ter de enfrentar, caso não seja possível, nessa dificílima,
duríssima fase de recursos, convencer ministros a reexaminaras “contradições,
omissões e obscuridades” do acordão que resume a condenação.
Não acho que esses diretores deveriam ser
julgados ou condenados no lugar de Pitzolato. Como você verá a seguir, eles
também seriam vítimas de um erro. Mas, na lógica do julgamento, ocorreu uma
situação estranhíssima, inexplicável.
Os diretores que deixaram a assinatura naquelas
notas que, na visão do STF, constituem a prova contra Pizzolato, tiveram a
sombra e água fresca. Nem a turma do mensalão PSDB-MG foi tão bem tratada.
Se autografaram pagamentos que eram criminosos,
como diz a denúncia, no mínimo deveriam ter sido julgados como cúmplices,
co-autores, ou coisa semelhante. Poderiam demonstrar, se fosse o caso, que eram
simples laranjas de um super-poderoso Pizzolato, que agia de modo solerte nos
bastidores. Não aconteceu uma coisa nem outra. Como uma pessoa pode ser
"pessoalmente" responsável nessas condições?
O grave é que isso está lá, nos autos. Ninguém
precisa “investigar” para saber quem assinou as notas. Os dois estão um
inquérito à parte, quando um calouro da Academia de Polícia sabe que não é
possível definir responsabilidades de um sem avaliar a de outro e vice-versa.
Temos, então, uma questão básica, elementar, que é chocante. Condena-se o único
diretor contra o qual não há provas nem atos de ofício sobre sua
responsabilidade.
Vamos prosseguir.
Pizzolato foi condenado por crime de peculato,
porque sua atividade envolve, supostamente, “dinheiro público.”
Seis meses depois da entrevista na qual Roberto
Jefferson falou em “mensalão”, uma auditoria assinada por 25 auditores do Banco
do Brasil mostrou que que os recursos usados pela empresa Visanet eram privados
“não pertencendo os mesmos ao BB investimentos nem ao Banco do Brasil.”
A auditoria mostrou inclusive que o dinheiro
sequer transitava pelo Banco do Brasil. Ficava numa conta da Visanet e, quando
era o caso de usá-lo em campanha de publicidade do cartão, um diretor,
previamente escolhido pelo Banco – aqueles dois nomes já citados aqui --
assinava uma nota autorizando o pagamento para a agencia de Marcos Valério,
DNA.
Em seu depoimento como testemunha, o auditor
chefe do Banco confirmou o que disse. Deu explicações suplementares, sanou
todas as dúvidas. Nenhuma linha de seu trabalho foi contestada pela acusação.
Nenhum número. Pergunto assim quem deveria ser levado em conta: o auditor, que
conhece cada centímetro quadrado do banco, ou o ministério público, envolvido
em demonstrar “o maior escândalo da história”?
No julgamento, quando o advogado de Pizzolato,
Sávio Lobato, terminou a defesa, o relator Joaquim Barbosa fez uma interpelação
sobre a natureza dos recursos. Joaquim queria saber se eram públicos ou
privados. Sávio explicou, didaticamente, como a coisa funciona. Toda vez uma
pessoa faz uma pequena compra com o cartão, paga uma porcentagem à Visa. Esta
retira uma fração deste dinheiro recolhido para formar o fundo Visanet. Com
esses recursos, recolhidos de quem tem o próprio cartão, o Fundo financia
campanhas de seus quase 30 bancos associados, entre eles o Banco do Brasil. O
youtube tem a íntegra das alegações de Sávio Lobato no STF.
Ali se vê o momento em que o advogado dá
explicações ao relator. Há uma certa tensão. Mas o argumento fica claro. Como
cliente associado a Visa, o Banco do Brasil, através daqueles diretores que não
eram Pizzolato, autorizava o Fundo a pagar agências que faziam campanhas.
Nesta divisão do trabalho, cada banco cuidada da
publicidade, com suas agências, seu marketing. O Fundo pagava, com o dinheiro
recolhido a partir de cada compra de seus clientes.
Pitzolato também foi condenado numa discussão
falsa, em torno do Bonus de Volume. O STF considerou que ele tinha o dever de
obrigar a DNA a devolver ao banco o chamado BV, que é uma retorno que as
agências recebem de seus anunciantes em função de campanhas realizadas. Os
juízes consideram que essa atitude de Pizzolato também contribuiu no desvio de
recursos.
Chega a ser constrangedor porque revela desconhecimento
da questão. Na fase de interrogatórios e testemunhos, a defesa convocou um
executivo da TV Globo, a maior empresa de comunicações do país, para explicar o
que vem a ser o BV. Num depoimento de mais de uma hora, que não foi contestado
em nenhum momento por membros do ministério público, Otavio Florisbal, na época
o principal executivo da emissora, explicou claramente o que é o Bonus, como é
pago, porque não é nem deve ser devolvido aos anunciantes, devendo ficar com a
agência. A defesa também lembrou que uma decisão recente do Tribunal de Contas
da União legalizou o uso do BV, dirimindo dúvidas que poderiam haver. A
realidade é que, além do setor privado, estatais e empresas mistas adotam o
mesmo procedimento. Seriam punidas pelo mercado se não agissem assim.
Se o Banco do Brasil errou, por que os outros
não foram investigados nem condenados? Não haveria aí um crime de
responsabilidade, no mínimo?
Outra acusação é que Pizzolato, como diretor de
marketing do Banco, não acompanhou nem fiscalizou devidamente o trabalho da
DNA. Na definição de funções, esse trabalho cabia ao gerente executivo, Claudio
Vasconcelos, outro que não foi incomodado pela ação penal 470.
No julgamento, o promotor Roberto Gurgel citou
depoimento de uma testemunha que afirmou que as campanhas da DNA eram uma
farsa, sugerindo que não passava de uma cobertura para se enviar R$ 73 milhões
para o PT.
Rastreando as contas da testemunha a Polícia
Federal colocou sua credibilidade em dúvida. Descobriu um deposito indevido,
enviado por outra agência.
A denúncia de que as campanhas eram uma fraude
ajudam a dar um número para o mensalão – teria custado R$ 73,8 milhões – mas
isso não se sustenta. É tanto dinheiro que não faz nexo.
Qualquer pessoa que já teve de enfrentar um
briga por seus direitos junto a uma empresa de cartão de crédito sabe que elas
não perdoam um centavo em suas cobranças, de taxas que não se entende nem elas
explicam. Para se acreditar num golpe de 73,8 milhões, às claras, com
assinatura, é preciso acreditar num disparate: um banco de malucos embolsa R$
73,8 milhões de uma multinacional como a Visa e nada lhes acontece.
E se esse dinheiro sumiu dos cofres do Banco do
Brasil, como quer o STF, é de se perguntar por que, dez anos depois, nenhum
presidente da instituição foi sequer chamado a prestar contas. Nem é preciso
apelar para a teoria do domínio do fato, neste caso, para fazer um chamado as
responsabilidades, vamos combinar.
Também foi possível demonstrar, até com ajuda de
uma auditoria privada, que as campanhas foram realizadas. Há fotos de eventos,
imagens e assim por diante. Também há notas de pagamentos, para empresas com
CNPJ, endereço conhecido. Rastreando notas e pagamentos de serviços de quase
uma década, DNA conseguiu comprovar, nota por nota, num esforço gigantesco de
defesa, 85% dos gastos – porcentagem notável, considerando o tempo passado e a
imensa quantidade de fornecedores, clientes e empresas envolvidas.
Cabe lembrar, contudo, que mesmo que alguma
irregularidade ficasse demonstrada, ela envolveria recursos privados,
recolhidos pela Visanet. Não era dinheiro do Banco do Brasil.
Uma acusação acompanha Pizzolato desde o início
do mensalão. Ele recebeu um envelope com R$ 326 000 retirados do Banco Rural.
Pizzolato alega que o dinheiro era do PT. O relator Joaquim Barbosa sustentou
que foi pagamento de propina por parte do esquema.
Você pode duvidar de um e de outro e eu até
admito que, conhecendo os maus costumes do mundo político, é difícil aceitar o
argumento de Pizzolato. Ninguém quer se sentir ingênuo num universo de
espertos, vamos combinar.
O fato é que a Receita quebrou seu sigilo fiscal
e sua conta bancaria e não encontrou traço desses recursos. Ele comprou um
apartamento de R$ 400 000 na mesma época, o que gerou suspeitas. Mas provou
usou recursos acumulados em sua carreira de executivo de banco, com
investimentos declarados honestamente à receita.
Seja como for, a acusação não fez sua parte. Não
rastreou o dinheiro a ponto de provar que ele foi embolsado por Pizzolato.
Votou-se numa dedução, numa suspeita, numa probabilidade, altíssima, conforme
determinada visão.
Mas fica uma dúvida básica. Para que pagar
propina a um diretor que não tinha poder de liberar um centavo?
Como lembrou um economista aqui no Facebook,
Roberto Anau, com este açodamento o PT acusou o caseiro Francenildo de embolsar
$$$ para acusar Antonio Palocci.
Quem acha que é sempre esperto poderia responder
esta e outras perguntas. E quem sabe concluir que querem que faça o papel de
bobo.
* Paulo Moreira Leite - Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do
Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de
direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro
General da Casa".
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