A despeito de todos os segmentos e classes
da sociedade brasileira elegerem a saúde com um dos mais tortuosos problemas da
nação e advogarem a necessidade de transformações profundas nas políticas no
setor; quando se fala na relativização do mercantilismo, que transformou a
saúde ou melhor a doença em mercadoria, ou ainda, quando se fala na
transformação da utopia SUS e em verdadeira democratização de políticas
sanitárias e de acesso à saúde o que ver é a fúria ameaçadora do corporativismo
e a erupção vulcânica dos que estão sempre a conspirar contra a emancipação dos
pobres.
Embora muitos nesses tempos tormentosos não saibam ou não queiram saber ou
lembrar, a idéia de responsabilidade humana do médico, da medicina como
sacerdócio e não como um negócio, da saúde com valor e não como mercadoria
existiu até mesmo na época em que não se distinguia a medicina da magia.
De fato em todos os códigos oficiais de ética médica da Antiguidade, tanto de
Hamurabi, de 2.000 anos antes da Era Cristã, como o Susruta, do V Século antes
de Cristo, ou de Hipócrates de cerca dos anos 460 a 370 antes de Cristo,
tratavam das relações do médico com os seus pacientes, do atendimento as
necessidades do doente. Mas que o que antes era apenas norma, hoje quando se
assiste os avanços no campo da medicina em descompasso com o abandono e a falta
de acesso insumos mínimos necessários à preservação da saúde das populações
mais pobres, sobretudo das periferias e das cidades mais distantes dos grandes
centros urbanos, transformou-se é um dilema ético global, no caso específico do
Brasil, um dilema ético nacional.
O que ocorre a nossa volta, a transformação da saúde em mercadoria e
petrificação do corporativismo que tenta impedir a democratização e o acesso
universal aos insumos de saúde da todos, deveria ser razão para sacudir a nossa
inércia, desafiar a nossa fé no progresso humano e nos encher de um sentimento
de vergonha.
Sabe-se muito bem que o profissional médico como qual outro ser humano padece
de apetites e das ambições. Em uma sociedade dominada pelo consumismo, na qual
prevalece a supremacia da economia sobre todos os demais setores da vida é de
fato quase natural que até mesmo em áreas como a medicina se exacerbem os
apetites malsãs, notadamente o do lucro egoístico, não obstante e nem por isso
o Estado deve ficar omisso e eqüidistante, como se saúde não fosse uma questão
de Justiça e um Direito Humano fundamental.
O cabo de guerra em que se transformou o programa do governo federal que busca
democratizar o acesso à saúde pública, com a distribuição mais equânime de
médicos por cidades e regiões, relativizando os efeitos perversos da
mercantilização da medicina está a evidenciar a irrefutavelmente a necessidade
da intervenção estatal para fazer valer a Constituição Federal, fazendo com que
o SUS, o pleno acesso de todos aos insumos de saúde deixem de ser utopia de
bisonhos constituintes que acreditaram na possibilidade de conciliação entre
livre mercado e interesse social quando escreveram o capítulo da Carta Magna
que trata do Direito à Saúde.
A união, a convergência de discursos de profissionais da medicina, de
operadores do direito, de jornalistas e de setores da direita política alegando
que a vinda de médicos de países estrangeiros, sobretudo de Cuba, se constitui
em uma política de escravização e de precarização de direitos trabalhistas, não
se sustenta na medida em que, não se escuta quaisquer denúncias ou se ver a
insurgência desses mesmos setores com a vinda de trabalhadores do Haiti para
laborarem na construção civil em todos os recantos do Brasil, de trabalhadores
da Bolívia e de Bangladesh para esvaírem na indústria de vestuário das
periferias da cidade de São Paulo , esses sim em condições de escravidão, mas
em favor das grandes corporações e da acumulação capitalista.
Os discursos de todos esses falsos paladinos da moralidade, dos zelosos dos
interesses dos trabalhadores médicos cubanos, quando eles mesmos, muitas vezes
mantém empregados das suas fazendas ou das suas cozinhas em condições
degradantes e de semi-escravidão, tem a ver com substrato ideológico, uma vez
que também são eles parte integrantes de determinadas corporações infensas à
democratização, são defensores da exclusão de privilégios corporativos e de
classes sociais.
De fato o falso dilema em que se transformou a democratização do acesso á
saúde, com a vinda de médicos estrangeiros, principalmente os cubanos para
atenderem as populações desassistidas, aqueles as quais o interesse pelo lucro
relegou a condição de párias sociais, tem a ver com a ótica do que é
prioritário e o que é supérfluo num Estado Democrático Social.
A ousada posição e a estratégia adotada pelo Governo Federal no que diz
respeito à democratização do acesso a saúde, envolve uma questão ética
fundamental, qual seja, ao invés de o Estado prover apenas alguns escolhidos
com os recursos da medicina moderna, deve proporcionar cuidados em saúde as
massas, mesmo que incorra nos riscos de impopularidade juntos aos interesses
corporativos e setores médios da sociedade.
Inequivocamente, não há como o Estado, independentemente da sua natureza
classista, dar de ombros aos interesses gerais da população e fazer letra morta
da Constituição Federal, alinhando-se apenas com interesses corporativistas e
de apenas uma classe social, colocando em risco o equilíbrio do tecido social e
a próprio modelo de dominação, deixando os desprotegidos à própria sorte e
derrogando os princípios da Solidariedade, da prioridade à vida e da construção
de uma sociedade menos desigual.
Saúde é uma questão de Justiça, portanto, o que deve importar nas escolhas
políticas nesse campos são os interesses de seres humanos e na de uma única
classe social ou corporação, em que pese a gritaria, verdadeira algazarra de
profissionais médicos, operadores do Direitos e da grande mídia que pouco se
importam se nos grotões do Brasil crianças ainda morram de infecção por
lombricóides, uma vez que para a maioria dos médicos brasileiros no exercício
da medicina os princípios éticos e interesse social devem ser sacrificados em
favor do status social e do lucro.
MIGUEL DOS SANTOS CERQUEIRA, Defensor Público, Coordenador do Núcleo de Defesa
de Direitos Humanos e Promoção da Inclusão Social da Defensoria Pública do
Estado de Sergipe, titular da Primeira Defensoria Pública do Estado de Sergipe.
E-MAIL: migueladvocate@folha.com.br
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