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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Seu Ciço’, um bodegueiro das quantas

Um homem bom, generoso, trabalhador; que viveu longe das luzes da fama; que não precisou do elogio da critica.

Qualquer um gostaria de dar asas ao pássaro das saudades e viajar de volta no tempo, rever coisas da infância, quiçá, simples para os dias atuais, mas de grado espanto no passado. Início da década de 70, em Estância ainda não existia o Ginásio Albano Franco, a Estação Rodoviária, o Bairro Cidade Nova, o conjunto Valadares; a Fábrica Santa Cruz ainda ecoava o seu apito avisando aos operários o turno do trabalho; funcionavam, de vento em popa, os cinemas Gonçalo Prado, São João e Guarany; o Bar Central servia de embarque e desembarque de passageiro para o Sul do país; os meninos chamavam a professorinha de tia e, ainda, se cantava o Hino Nacional antes de adentrar a sala de aula.

Aos domingos, pela manhã, meninos que vinham dos bairros Botequim, Porto, Santa Cruz, da Rua da Usina, reuniam-se na praça do ‘Jardim Velho’ para catar os oitis madurinhos e deliciosos que caíam.  Era uma devoção da gurizada o encontro ali. Depois de saborear alguns, desciam a Rua do Cravo e a próxima estada era na bodega do Sr. Cícero, na Rua da Baixa. ‘Seu Ciço’, como era tratado pelos amigos, já esperava a molecoreba portando um saquinho lotado de balas, pirulitos e chupa-chupa. Era uma festa!  ‘Seu Ciço’ não tivera filhos, expressava tamanho carinho pelos meninos que costumavam visitar sua bodega.

Após libar as guloseimas, os moleques seguiam pela Rua do Aquidabã, desciam a ladeira em direção da maré, onde havia um banco de areias branquinhas, em um local chamado ‘os portinhos’; subiam nas ingazeiras robustas e depois pulavam no meio do rio, numa explosão de inenarrável alegria.

Naquele tempo, aparelho de TV era privilégio de poucos. ‘Seu Ciço’ já possuía um de 24 polegadas, em preto e branco, em caixa de madeira, da marca PHILCO, exposto sobre uma geladeira (Kelvinator) de cor azul-claro, dos cantos arredondados, localizada no canto da parede no interior da bodega. ‘Seu Ciço’ apertava o cinto da calça acima da cintura, quase no estômago. Seu corte de cabelo era estiloso – rapado nas laterais e atrás, deixava apenas um topetinho na parte da frente. Media aproximadamente 1,75, devia pesar uns 85 quilos.

Gostava de praticar caridade; homem de coração bondoso; fazia questão de prestar a última homenagem aos conhecidos. Se o falecido fosse amigo, ele não faltava ao sepultamento. Vestia seu melhor terno, punha o chapéu de baeta preto, pendurava o guarda-chuva no antebraço e lá se ia.

Os amigos e vizinhos lotavam sua casa (o espaço da bodega) para assistir aos programas de TV: as novelas Irmãos Coragem (TV Globo) e Jerônimo, o Herói do Sertão (TUPY), eram as preferidas. Para captar as imagens, o anfitrião instalara uma antena de quase 20 metros de altura; as imagens ainda chegavam difusas do visinho Estado da Bahia. A novidade da Rua da Baixa, a TV de ‘Seu Ciço’, causava frisson na vizinhança, vinha gente até dos bairros Botequim e Candeal.

Outra boa lembrança que marcara aqueles anos, uma vitrola de móvel (Telefunken), de aproximadamente um metro de altura, por um metro e meio de comprimento. No compartimento do toca-disco, luzes coloridas davam um tom mágico. ‘Seu Ciço’ colocava um LP para tocar e sobre o disco assentava soldadinhos, bonequinhos, animais, que rodavam com o movimento do LP. As portas do compartimento do toca-disco ficavam abertas, os meninos ficam ali absortos com a sonância do aparelho.
Do lado de fora da casa, duas mini-caixas de som presas à parede reproduziam as músicas tocadas. Ludugero, Marinês, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, enfileiravam a lista.

Sua bodega era tipo um armazém de secos e molhados. De tudo tinha um pouco: cachete de linha, querosene Jacaré, vaselina, sabão, fumo, papel de cigarro kolomy, ki-suco, aguardente Baiúca, Pitu, Serra Grande, vinho da Buril, vassouras, tinta de cabelo Henê, pasta de cabelo Paquetá, carvão, corda de sisal, esteira; cigarros Clássico, Arizona, Astoria, Gaivota; café Gatão, café Aragipe, massa de milho Santo Antônio, feijão, arroz, farinha de Itabaiana, pipocas do Pará, rapadura, requeijão, mortadela, cuminho, colorau, vinagre Canário e etc.. Em cima do balcão uma frasqueira das giratórias, com tampa de enroscar, cheinha de balas apaches, dimbinho, xibio e chicletes ping pong.

Bené, uma senhora de cor morena, o ajudava no atendimento aos clientes. Certa feita, por volta das 10 horas da manhã, um moço que sofria de perturbações mentais adentrou a bodega e disparou: “Ciço, embrulhe aí cinco cruzeiros de cabelo xuin”. A balconista pegou uma vassoura e deu-lhe: “Olha aqui o xuin, seu ousado”!

Natural da cidade de Riachão do Dantas, Seu Cícero, homem que desfrutava do respeito da comunidade; trabalhou 17 anos na Fábrica Santa Cruz. Sujeito de boa índole, jamais pernicioso; desses que só nasce um a cada cem anos.

Faço essa homenagem póstuma a um homem bom, generoso, trabalhador; que viveu longe das luzes da fama; que não precisou do elogio da critica. Um amigo que cresci querendo bem; varão de muita fé em Deus. ‘Seu Ciço’ nos deixou no dia 10 de dezembro de 1995, há 16 anos. Descansa no Cemitério da Piedade, na cidade de Estância, Estado de Sergipe.

Genílson Máximo
Jornalista e Radialista

Um comentário:

  1. Gostei do artigo. Uma leitura leve, com a cara do interior, do vizinho amigo...coisas q estão se perdendo. Muito bom resgatar histórias assim.

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