Arthur
Gasparini tinha 60 anos e era professor do ensino superior. Engenheiro por
formação, trabalhou durante quase toda a sua vida profissional numa empresa de engenharia
de porte médio em Salvador, tendo sido admitido como estagiário ainda quando cursava
engenharia civil na Universidade Federal da Bahia.
Tinha três
filhos: dois homens e uma mulher. O filho mais velho, Arthur Gasparini Júnior,
era médico. Tinha acabado de concluir a residência em cardiologia, mas já
exercia a medicina há três anos numa clínica que abrira com dois colegas de
faculdade, quando acabara de concluir a residência em clínica geral. Também
trabalhava dando plantões duas vezes por semana na emergência de um hospital
público, o HGE.
A filha do
meio, Suelen, optou por seguir o pai na profissão e trabalhava no estado do
Pará, em uma grande construtora.
Já o filho
mais novo, Samuel, acabara de entrar numa faculdade particular no curso de
Direito e ainda morava com os pais. Não trabalhava e ainda não sabia bem o
queria, em dois anos era a terceira faculdade que estudava.
Arthur
estava próximo de completar 30 anos de casado com Sueli, a quem conhecera na
escola de ensino fundamental quando ainda eram crianças. Foram colegas em todos
os níveis escolares.
Acabara de
aposentar-se pelo INSS havia três meses. Entretanto, devido ao baixo salário
que recebia como engenheiro, o valor da aposentadoria não fora suficiente para
suprir as necessidades da família e se viu obrigado a ensinar numa instituição
de ensino superior para complementar a renda.
Sueli também
era professora, trabalhava numa escola de educação infantil desde que se
formara no antigo Curso Normal do ICEIA. Atualmente, exercia a função de
supervisora escolar na mesma escola, porém, devido à baixa remuneração que
recebia não podia ajudar muito o marido na educação dos filhos, o salário mal
dava para atender as suas necessidades pessoais.
Criara os
filhos com muitas dificuldades, mesmo assim, nunca permitiu que nada lhes faltassem
mantendo-os estudando nas melhores escolas particulares.
Há alguns
anos, optara por morar de aluguel. Possuía um pequeno apartamento de dois
quartos na periferia, porém com o crescimento dos filhos tornara-se
insuficiente para abrigar toda a família. Suelen ocupava o segundo quarto
enquanto os meninos dormiam no quarto da empregada.
Foi quando
tomou a decisão de vender o apartamento para permitir mais conforto para a
família. Sabia que o valor da venda do imóvel não era suficiente para comprar
outro em um lugar melhor, então foi morar de aluguel num bairro nobre de
Salvador.
As crises
financeiras foram muitas, chegou ao ponto de pedir dinheiro emprestado a
agiotas pagando juros altíssimos, mas sempre, as enfrentou com coragem e
determinação. Devendo a um aqui, outro ali, ia levando a vida.
Atualmente,
a situação não mudara muito. Apesar de Suelen estar morando em outro estado e
Júnior já ter adquirido seu apartamento, as dificuldades pareciam ter aumentado.
Eles não contribuíam em nada com as despesas da casa, pelo contrário, de quando
em vez Suelen solicitava um depósito em sua conta alegando necessidades
imediatas com a promessa de devolver o mais breve possível, mas isso nunca
acontecia. Júnior, se não pedia nada, também não ajudava. O fato era que o
dinheiro da aposentadoria era consumido totalmente com o aluguel ficando as
contas para serem pagas com a remuneração recebida da faculdade, que a cada
semestre encolhia, já que recebia por turma e nem sempre havia turmas para
lecionar, principalmente no meio do ano.
Dormira mal
a noite toda. Tivera pesadelos terríveis, sempre iguais. Era perseguido por
alguém sem identificação, que nunca mostrava o rosto. Acordara às quatro horas
da manhã suando por todos os poros e não conseguira dormir mais. O que o
preocupava no momento era o pagamento de uma conta de energia que já havia
completado trinta dias de vencida e corria sério risco de ter o fornecimento
cortado. Já passara por isso em outra oportunidade e fora constrangedor
explicar ao proprietário do imóvel a situação, já que a conta ainda estava no
seu nome.
Analisou a
situação rapidamente: possuía o dinheiro para pagar a fatura, mas não dava pra comprar
o remédio para controlar a pressão arterial que tomava diariamente há quase
vinte anos.
Antes, o
filho fornecia o medicamento através das amostras grátis conseguidas com os
representantes dos laboratórios, mas, ultimamente, eles não estavam mais fornecendo
o remédio alegando escassez do produto no mercado. Então, já há algum tempo comprava-os todo mês,
o que aumentava mais as suas despesas.
O que fazer?
Perguntava-se a toda hora. Não tinha mais margem para conseguir empréstimos.
Nem aos agiotas poderia recorrer, já que não tinha mais capacidade de
pagamento. Efetivamente, chegara ao fundo do poço. O seu dilema neste momento
era: comprar o remédio ou pagar a conta?
Logo cedo
ligou para Júnior para pedir-lhe que pagasse a conta, mas ele descartou qualquer
hipótese de pagamento alegando que estava promovendo uma reforma na clínica e encontrava-se
muito apertado. Todos os atendimentos médicos haviam sido suspensos até a obra
ficar pronta. Estava vivendo dos parcos recursos do seu salário no HGE.
Depois de
muito pensar tomou uma decisão: iria pagar a conta da energia, não passava pela
sua cabeça reviver o constrangimento do passado novamente. Ademais, logo iria
conseguir o dinheiro para comprar o remédio, sempre fora assim. Em outras
ocasiões já ficara por três dias sem tomá-lo e nada acontecera. Agora não seria
diferente. Deus proverá – afirmou
convicto para si mesmo, era o que dizia sempre que alguma aflição o
atormentava.
No outro dia
acordou tão disposto que resolveu fazer uma caminhada numa praça perto de onde
morava. No fundo buscava explicações
para aquela disposição já que fazia 24 horas que não tomava o remédio da
pressão. Chegou até, por um momento, duvidar da necessidade de ingerir o
medicamento. Mas logo na primeira volta sentiu uma leve pontada no peito.
Respirou intensamente levantando os braços e a dor passou. São gases – pensou. No momento seguinte a dor veio tão forte que
não conseguiu manter-se de pé e desabou pesadamente. Tinha sérias dificuldades
para falar e respirar. Logo acudiram algumas pessoas, mas ele quase não
conseguia vê-las nitidamente. Foi quando tudo escureceu.
O doutor
Arthur Gasparini Júnior estava saindo do plantão quando chegou um enfermeiro
esbaforido solicitando a sua presença na emergência. Havia chegado um paciente
com um quadro grave de infarto do miocárdio e necessitando de atendimento
urgente, já que ainda estava com vida. O Cardiologista que iria substituí-lo
ainda não havia chegado, por isso estava solicitando a sua presença.
- Desculpe, infelizmente tenho um
compromisso urgente e não posso ficar. Solicite um médico clínico para
examiná-lo até o meu substituto chegar – disse o doutor Arthur, retirando-se
rapidamente.
A caminho de
casa recebeu um telefonema de sua mãe informando-o que seu pai sentira-se mal
na rua e fora levado para o hospital. Estava no HGE.
Desesperado,
voltou ao hospital e foi direto para a emergência. Chegou no exato momento em que
estavam removendo o paciente para o qual o enfermeiro havia solicitado o
atendimento. Ao chegar mais perto, uma triste constatação: era seu pai quem
estava ali naquela maca sendo levado para o necrotério.
- Agora não tem mais o que fazer, doutor
– disse um enfermeiro - Está morto. Ficou mais de meia hora sem qualquer
atendimento. Se tivesse sido atendido um pouco antes com certeza teria
sobrevivido. Não teve sorte!
Zel Pinto é escritor, economista e
professor do ensino superior.
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