O Brasil é um país por demais singular, as nossas elites, todas elas, mesmos as ditas progressistas e que no discurso professam idéias de Esquerda, quando provocadas a se depararem com a realidade, revelam a sua verdadeira face, o universo de hipocrisia que sustenta os seus discursos.
De certo nem todos nós somos historiadores e muitos dos nossos intelectuais não valoram a história na formulação de suas elucubrações e formulações teóricas, seja na esfera do direito ou da sociologia, talvez por isso na questão dos novos direitos adquiridos pelas empregadas domésticas, a exemplo dos momentos históricos em que gradativamente se chegou à abolição da escravatura, vejam nesses tais direitos adotados por recomendação da OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, uma hecatombe que conduzirá ao fim da laboriosa classe das empregadas domésticas.
Destarte, as alterações ocorridas na Constituição Federal que emanciparam os empregados domésticos da sua condição de semi-escravos ou servos, se deveram à adoção da Convenção nº. 189 da OIT pelo Brasil. A Convenção do organismo da ONU que tutela as relações de trabalho entre os seus membros, dispõe que o trabalhador doméstico deve gozar dos mesmos direitos dos demais trabalhadores, quais sejam, jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais; o adicional de 50% e 20% para as horas extras e adicionais noturnos; descanso semanal de pelo menos 24 horas seguidas; direito à organização sindical, o FGTS, não mais facultativo, tornando-se obrigatório.
De fato toda essa celeuma com a chegada do Direito do Trabalho à cozinha e aos quartos das casas das famílias de classe média e dos grã-finos, tem a ver com a mentalidade escravocrata que permanece no seio da sociedade brasileira, com a hipocrisia que é tônica nas nossas relações.
O velho e desgastado discurso de que as empregadas domésticas são partes das famílias, são agregadas do núcleo familiar e, portanto, tratadas com dignidade é decência não passa de falácia. O certo é que na maioria das casas as empregadas domésticas são tratadas como cidadãs de segunda classe, só têm acesso ao elevador de serviço, só poder fazer a sua refeição na mesinha da cozinha e muitas vezes, nas casas em que as famílias têm filhos adolescentes são as iniciadoras da vida sexual de varões, com o agravante de se engravidarem serem enxotadas dos lares ou submetidas a aborto por uma fazedora de anjos qualquer.
Nos dias presentes, em que se segue à aprovação e regulamentação dos novos direitos das empregadas domésticas, semelhantemente as vésperas da promulgação da Lei Áurea, quando se dizia que o país iria à bancarrota pela ausência da mão de obra escrava; aqueles mesmos que se dizem cristãos, defensores do Estado de Direito, Homens Bons e progressistas não se atemorizam em afirmar o fim da classe das empregadas domésticas e a bancarrota das famílias.
Em seguida à abolição da escravatura, não chegou o fim do mundo, o país não foi à bancarrota, o que de fato aconteceu foi à marginalização da mão de obra liberada da escravidão, parte dela reaproveitada nos empregos domésticos como semi-escravos outra parte empurrada para a delinqüência, visto que não houve qualquer compensação pela exploração escravocrata, e apenas na atualidade, com as políticas de cotas raciais se pretende uma reparação para as feridas que restaram abertas da escravidão. Também a nova lei das empregadas domésticas vem nessa mesma esteira, que se diga, tardia.
Não obstante o atraso no reconhecimento de que o trabalho doméstico em nada é diferente daquele exercido pelo industriário, comerciário ou funcionário público; o que se ouve nas pregações de empregadores de modo acintoso outras vezes disfarçado é o discurso de que com a emergência das novas leis de equiparação as empregadas domésticas entrarão em extinção, pois apesar de elas quererem trabalhar e não terem outras opções de emprego, o Governo e o Estado estão a opor óbice com leis protecionistas.
O discurso propalado, embora não assumam categoricamente, tem a ver com o ranço escravocrata, com o pensamento daqueles que se supõe com o pé na senzala apenas quando os seus antepassados foram responsáveis pelos estupros de negras que transformou o n osso país em uma nação de “mulatos”.
O discurso arrogante da negação ou diminuição de direitos dos empregados domésticos, muitas vezes endossado por operadores do Direito, nasce da perniciosa idéia de que a existência do Direito do Trabalho é um entrave ao desenvolvimento econômico, para os que adotam o discurso, nas relações de trabalho deve prevalecer à liberdade total, sem intervenção do Estado, permitindo-se que “O PESCOÇO POSSA LIVREMENTE DIALOGAR COM A GUILHOTINA”. De certo esse é melhor dos mundos para aqueles que acreditam nas teses liberais ou buscam reviver os tempos de Thomas Hobbes.
O cômico ou trágico nesses discursos é que segmentos, muitos deles incrustados no aparelho do Estado, Juízes, Defensores Públicos, Promotores de Justiça, Policiais Federais, Professores Universitários, etc., que vivem diuturnamente a reivindicarem para si direitos e mais direitos e aumentos salariais, muitas vezes em completo desacordo com a situação fiscal do Estado combalido e sem recursos, que até mesmo não aceitam a regulamentação do Direito de Greve no serviço público, para inviabilizarem administrações que tem com suas adversárias; mas, no entanto, quando se trata dos seus semi-escravos, dos seus empregados domésticos não se que admitem que conquistem direitos e sequer ascendam à condição de servos.
Malgrado a compreensão de alguns, daqueles com saudades do período da escravidão, daqueles que entendem que o Trabalho é fator de diminuição da sua carga de nobreza, que só aos negros está destinado o trabalho, tão é assim que a maioria dos trabalhadores domésticos são negros e semi-analfabetos, a Constituição Federal, erigiu o trabalho como um dos instrumentos de promoção da dignidade da pessoa humana, e meio concretizador de diversos direitos fundamentais.
Nessa esteira, se faz necessário, a luz da prevalência do Princípio Constitucional da Igualdade, revolucionar as formas das relações e todo o Direito no âmbito do Trabalho Doméstico. Afinal, apenas por conveniências no sentido de maximizar a exploração, pagar salários aviltantes, é que se continuar a insistir que a emergência da igualdade de direitos entre trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores será uma hecatombe, um final dos tempos, há na ser que num átimo se transforme toda a estrutura organizacional dos modelos de administração das casas, da criação dos filhos ou então as mulheres deixem o mercado de trabalho para voltarem às cozinhas e às faxinas.
Por: Miguel dos Santos Cerqueira – Defensor Público, titular da Primeira Defensoria Pública do Estado de Sergipe, Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Promoção da Inclusão Social da Defensoria. E-mail – migueladvocate@folha.com.br
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