Segunda-feira,
dia feio, sombrio, uma chuva fina insistia em bater na janela do quarto. Ainda
sonolento, olhei o relógio na cabeceira da cama, os ponteiros marcavam
rigorosamente nove horas. Dei um pulo e em questão de segundos já estava no
banheiro, tinha um compromisso de trabalho às dez. E aquela chuvinha insistente...
Não deu
tempo nem pra tomar o café da manhã, engoli um suco de laranja e saí. O
compromisso era perto de casa, por isso, resolvi ir caminhando mesmo, afinal de
contas andar de carro em Salvador, requer muita paciência, chovendo então...
Foi só pegar o velho guarda-chuva e, em pouco tempo, já estava descendo a
ladeira.
Me
esgueirando entre as paredes das casas para amenizar o efeito da chuva, parei
na última delas que possuía cobertura. O próximo passo era um descampado, um
terreno baldio em forma de praça, a essa altura, totalmente alagado. Era
necessário passar por ali antes de pegar a rua na qual situava-se o prédio onde
iria encontrar-me com um empresário.
A chuva
triplicou de intensidade desde que saíra de casa. E aumentava cada vez mais. As
ruas começavam a alagar rapidamente. Raios e trovões pipocavam a cada
instante. Nessa altura, eu, ali,
tiritando de frio, praguejava por ter tomado a decisão de ter saído de casa. A
visão da minha cama tão aconchegante não saía da cabeça. Que estúpido fui! – praguejei.
Mas já que estava
ali, o melhor era seguir em frente. Dobrei a bainha da calça até a canela e saí
para o terreno baldio. Mas não consegui chegar nem na metade do percurso. Logo
nos primeiros passos os pés atolaram até quase o joelho, então, pude avaliar a
situação: estava no meio de um baita lamaçal. Avaliei rapidamente a situação e
conclui que tinha que sair dali imediatamente. A chuva não parava e logo aquele
lugar, sem exagero, iria virar um oceano. O guarda-chuva foi arrancado das
minhas mãos por uma rajada de vento assim que entrei no descampado. Agora, já
totalmente molhado, coberto de lama e atolado até o joelho, preparava-me para
rogar ao Pai que me tirasse daquele lugar. Foi quando vi, bem perto dali, uma
igreja.
Era uma
igrejinha de dois andares, bem simples ainda com cobertura de telhas de barro. Tinha
que chegar lá, era a melhor solução para mim naquelas condições. Apesar da água
já haver penetrado na igreja uns dois palmos, as condições de abrigo
estariam bem melhores, pelo menos até a
chuva passar. Quem sabe o padre não me
empresta alguma roupa?- pensei
animado.
Com muito
esforço, consegui chegar à igreja. Fui a nado, andar naquele lamaçal era
totalmente impossível. As pessoas que lá estavam se esforçavam com vassouras e
rodos para tirar a água que, a essa altura, já começava a cobrir os pés dos
bancos e ameaçava chegar na sacristia.
Havia cinco
pessoas: o padre, o sacristão e três fiéis, todas mulheres. Quando me viram,
tomaram um susto. Eu parecia um extraterrestre que havia emergido das
profundezas da terra, coberto de lama do rosto à ponta dos pés. Depois das
devidas explicações, o padre, muito solícito e inexplicavelmente muito
tranquilo, levou-me para tomar um banho e trocar de roupa. Quando desci, a água
já havia tomado toda a parte térrea da igreja. Agora, chovia copiosamente. Enquanto
as beatas ajoelhadas rezavam em voz alta, o padre, gentilmente convidou-me para
passarmos para o primeiro andar, já que a água estava já cobrindo toda a
escada.
- São os desígnios de Deus, meu filho!
Logo, logo, a chuva vai passar – disse conformado.
Olhei pela
janela e tomei um susto. Na rua, o nível da água já havia assumido proporções
gigantescas, já não se distinguia mais os veículos, estavam todos submersos. As
pessoas nos tetos dos veículos acenavam pedindo socorro. A água não parava de
subir.
Em pouco
tempo, estávamos todos no telhado da igreja com a água já batendo nos nossos
pés, completamente desesperados. Somente o padre estava tranquilo.
- Fiquem tranquilos, irmãos! Deus não
vai permitir que aconteça nada demais! Não podemos abandonar nossa igreja! A
chuva já vai passar! – falava num tom de voz irritantemente tranquilizador.
Foi quando,
surgido do nada, apareceu um cidadão com um barco.
- Vamos gente, entrem no barco! A água
vai subir mais ainda! Vamos padre! – gritava nervoso.
Todos
corremos para o barco, menos o padre. As beatas foram as primeiras a subir.
Antes de entrar, notei que ele não se mexia e tampouco demonstrava vontade para
embarcar. Pedi para o cidadão esperar um pouco e fui falar com ele.
- Padre, vamos! – disse baixinho. A
situação vai piorar e pode não haver mais outra chance!
Ele sorriu e
disse ainda mais baixo:
- Vá você, meu filho! Eu não posso
abandonar minha igreja! O Pai vai tirar-me daqui, logo. A chuva vai passar.
Ele tinha
tanta convicção no que falava que resolvi fazer-lhe companhia. Afinal de contas
a água ainda estava batendo no tornozelo, podia esperar um pouco mais. E quem
sabe o Pai não o ouviria e faria cessar a chuva imediatamente?
Dispensei o
barco e fiquei fazendo-lhe companhia. Mas a chuva não passou nem a água parou
de subir. Em pouco tempo atingiu nossos joelhos. Agora já estava mais difícil
manter-se de pé no telhado, entretanto, o padre mantinha-se incrivelmente
tranquilo. Já estava temendo pelo pior quando bem na nossa frente apareceu uma
lancha do Corpo de Bombeiros. Desta vez não hesitei. Pulei imediatamente pra
dentro da lancha, mas, pra minha surpresa, o padre não se mexeu. Todos os
esforços para fazê-lo embarcar foram em vão, sempre com o mesmo argumento:
- Não posso abandonar minha
igreja, meus filhos! – falava comigo e com os bombeiros. – O Pai está comigo!
Mesmo
reconhecendo a tremenda demonstração de fé e a coragem do sacerdote, desta vez,
não pude ficar, baixei a cabeça e desejei estar longe dali o mais rápido
possível, não sem antes pedir a Deus que atendesse o seu pedido fazendo a chuva
cessar.
Naquela
noite não consegui dormir. A figura tranquila do padre não saía da minha
cabeça. No outro dia, já sem chuva, fui à igreja vê-lo. Intrigava-me como teria
escapado já que chovera até a noite. Mas ele não estava lá. Ninguém sabia dar
notícias suas. Foi quando chegou um cidadão afirmando que o padre Miguel havia
morrido na enchente. Seu corpo fora recolhido e estava no IML aguardando a
presença de parentes para identificação. Mesmo emocionado pelo impacto da
notícia corri imediatamente para lá, poderia ajudar em alguma coisa. Na saída
da sala onde ficavam os corpos aguardando identificação cruzei com um sujeito
esquisito, todo vestido de branco. Seu corpo emanava uma luz que impedia de ver
suas feições. E virando-se para o corpo do padre, disse:
- Era mesmo um cabeça dura esse
padre Miguel! Mandamos um barco ele recusou! Até os bombeiros ele não quis. O
que ele queria que fizéssemos mais?
Zel Pinto é escritor, economista e
professor no ensino superior.
Meu caro Zel:
ResponderExcluirParabéns pelo texto. A sua maneira de contar alguma coisa, nos faz desejar que a leitura das suas crônicas não acabe nunca. Pena que Popó não esteja mais presente para reverenciar um filho que só lhe deu gosto. Nós, que não somos parentes consanguíneos, mas, nos consideramos primos, vibramos de alegria com os seus livros e as suas crônicas.
Fernando do bandolim
Muito bom o texto! Pois é, Deus sempre se manifesta através de uma circunstância ou de alguém!
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