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segunda-feira, 25 de março de 2013

A FÉ DO PADRE



Segunda-feira, dia feio, sombrio, uma chuva fina insistia em bater na janela do quarto. Ainda sonolento, olhei o relógio na cabeceira da cama, os ponteiros marcavam rigorosamente nove horas. Dei um pulo e em questão de segundos já estava no banheiro, tinha um compromisso de trabalho às dez. E aquela chuvinha insistente...


Não deu tempo nem pra tomar o café da manhã, engoli um suco de laranja e saí. O compromisso era perto de casa, por isso, resolvi ir caminhando mesmo, afinal de contas andar de carro em Salvador, requer muita paciência, chovendo então... Foi só pegar o velho guarda-chuva e, em pouco tempo, já estava descendo a ladeira.

Me esgueirando entre as paredes das casas para amenizar o efeito da chuva, parei na última delas que possuía cobertura. O próximo passo era um descampado, um terreno baldio em forma de praça, a essa altura, totalmente alagado. Era necessário passar por ali antes de pegar a rua na qual situava-se o prédio onde iria encontrar-me com um empresário.

A chuva triplicou de intensidade desde que saíra de casa. E aumentava cada vez mais. As ruas começavam a alagar rapidamente. Raios e trovões pipocavam a cada instante.  Nessa altura, eu, ali, tiritando de frio, praguejava por ter tomado a decisão de ter saído de casa. A visão da minha cama tão aconchegante não saía da cabeça. Que estúpido fui! – praguejei.

Mas já que estava ali, o melhor era seguir em frente. Dobrei a bainha da calça até a canela e saí para o terreno baldio. Mas não consegui chegar nem na metade do percurso. Logo nos primeiros passos os pés atolaram até quase o joelho, então, pude avaliar a situação: estava no meio de um baita lamaçal. Avaliei rapidamente a situação e conclui que tinha que sair dali imediatamente. A chuva não parava e logo aquele lugar, sem exagero, iria virar um oceano. O guarda-chuva foi arrancado das minhas mãos por uma rajada de vento assim que entrei no descampado. Agora, já totalmente molhado, coberto de lama e atolado até o joelho, preparava-me para rogar ao Pai que me tirasse daquele lugar. Foi quando vi, bem perto dali, uma igreja.

Era uma igrejinha de dois andares, bem simples ainda com cobertura de telhas de barro. Tinha que chegar lá, era a melhor solução para mim naquelas condições. Apesar da água já haver penetrado na igreja uns dois palmos, as condições de abrigo estariam  bem melhores, pelo menos até a chuva passar. Quem sabe o padre não me empresta  alguma roupa?- pensei animado.

Com muito esforço, consegui chegar à igreja. Fui a nado, andar naquele lamaçal era totalmente impossível. As pessoas que lá estavam se esforçavam com vassouras e rodos para tirar a água que, a essa altura, já começava a cobrir os pés dos bancos e ameaçava chegar na sacristia.

Havia cinco pessoas: o padre, o sacristão e três fiéis, todas mulheres. Quando me viram, tomaram um susto. Eu parecia um extraterrestre que havia emergido das profundezas da terra, coberto de lama do rosto à ponta dos pés. Depois das devidas explicações, o padre, muito solícito e inexplicavelmente muito tranquilo, levou-me para tomar um banho e trocar de roupa. Quando desci, a água já havia tomado toda a parte térrea da igreja. Agora, chovia copiosamente. Enquanto as beatas ajoelhadas rezavam em voz alta, o padre, gentilmente convidou-me para passarmos para o primeiro andar, já que a água estava já cobrindo toda a escada.

          - São os desígnios de Deus, meu filho! Logo, logo, a chuva vai passar – disse conformado.

Olhei pela janela e tomei um susto. Na rua, o nível da água já havia assumido proporções gigantescas, já não se distinguia mais os veículos, estavam todos submersos. As pessoas nos tetos dos veículos acenavam pedindo socorro. A água não parava de subir.

Em pouco tempo, estávamos todos no telhado da igreja com a água já batendo nos nossos pés, completamente desesperados. Somente o padre estava tranquilo.

         - Fiquem tranquilos, irmãos! Deus não vai permitir que aconteça nada demais! Não podemos abandonar nossa igreja! A chuva já vai passar! – falava num tom de voz irritantemente tranquilizador.

Foi quando, surgido do nada, apareceu um cidadão com um barco.

         - Vamos gente, entrem no barco! A água vai subir mais ainda! Vamos padre! – gritava nervoso.

Todos corremos para o barco, menos o padre. As beatas foram as primeiras a subir. Antes de entrar, notei que ele não se mexia e tampouco demonstrava vontade para embarcar. Pedi para o cidadão esperar um pouco e fui falar com ele.
         - Padre, vamos! – disse baixinho. A situação vai piorar e pode não haver mais outra chance!

Ele sorriu e disse ainda mais baixo:

         - Vá você, meu filho! Eu não posso abandonar minha igreja! O Pai vai tirar-me daqui, logo. A chuva vai passar.

Ele tinha tanta convicção no que falava que resolvi fazer-lhe companhia. Afinal de contas a água ainda estava batendo no tornozelo, podia esperar um pouco mais. E quem sabe o Pai não o ouviria e faria cessar a chuva imediatamente?
Dispensei o barco e fiquei fazendo-lhe companhia. Mas a chuva não passou nem a água parou de subir. Em pouco tempo atingiu nossos joelhos. Agora já estava mais difícil manter-se de pé no telhado, entretanto, o padre mantinha-se incrivelmente tranquilo. Já estava temendo pelo pior quando bem na nossa frente apareceu uma lancha do Corpo de Bombeiros. Desta vez não hesitei. Pulei imediatamente pra dentro da lancha, mas, pra minha surpresa, o padre não se mexeu. Todos os esforços para fazê-lo embarcar foram em vão, sempre com o mesmo argumento:

              - Não posso abandonar minha igreja, meus filhos! – falava comigo e com os bombeiros. – O Pai está comigo!

Mesmo reconhecendo a tremenda demonstração de fé e a coragem do sacerdote, desta vez, não pude ficar, baixei a cabeça e desejei estar longe dali o mais rápido possível, não sem antes pedir a Deus que atendesse o seu pedido fazendo a chuva cessar.

Naquela noite não consegui dormir. A figura tranquila do padre não saía da minha cabeça. No outro dia, já sem chuva, fui à igreja vê-lo. Intrigava-me como teria escapado já que chovera até a noite. Mas ele não estava lá. Ninguém sabia dar notícias suas. Foi quando chegou um cidadão afirmando que o padre Miguel havia morrido na enchente. Seu corpo fora recolhido e estava no IML aguardando a presença de parentes para identificação. Mesmo emocionado pelo impacto da notícia corri imediatamente para lá, poderia ajudar em alguma coisa. Na saída da sala onde ficavam os corpos aguardando identificação cruzei com um sujeito esquisito, todo vestido de branco. Seu corpo emanava uma luz que impedia de ver suas feições. E virando-se para o corpo do padre, disse:

            - Era mesmo um cabeça dura esse padre Miguel! Mandamos um barco ele recusou! Até os bombeiros ele não quis. O que ele queria que fizéssemos mais?

Zel Pinto é escritor, economista e professor no ensino superior.

2 comentários:

  1. Meu caro Zel:
    Parabéns pelo texto. A sua maneira de contar alguma coisa, nos faz desejar que a leitura das suas crônicas não acabe nunca. Pena que Popó não esteja mais presente para reverenciar um filho que só lhe deu gosto. Nós, que não somos parentes consanguíneos, mas, nos consideramos primos, vibramos de alegria com os seus livros e as suas crônicas.
    Fernando do bandolim

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  2. Muito bom o texto! Pois é, Deus sempre se manifesta através de uma circunstância ou de alguém!

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